@PROJETO VIDA PRIVADA
Muito mais do que
"fotos no banheiro".
Dissonâncias cotidianas
"A linguagem artística tem quase por obrigação causar desconforto no indivíduo, colocá-lo em um lugar que não é o dele, existir enquanto espaço de diálogo dentro do processo de entendimento."
Vik Muniz
Existe um conjunto de conceitos associados à imagem de um banheiro. Esses conceitos circulam entre a escatologia e o erotismo. Mas, como jornalista especializada em arquitetura e decoração, vi a expansão de um terceiro eixo se impôr nas páginas das revistas. O eixo do bem-estar. Apenas por meio dessa nova função, o banheiro pôde entrar nas galerias de foto das reportagens mais elegantes. Ainda assim, permanecia um tabu: não eram bem vindas as imagens com vaso sanitário.
Quando me tornei a apresentadora do TV CASACOR, essa observação ganhou novos contornos. O maior patrocinador do evento é justamente um fabricante de louças e metais, a DECA. O Instagram começava a ser usado como a plataforma da imagem, mas, nos compartilhamentos de fotos, os banheiros nunca receberam protagonismo. Então, a epifania: na CASACOR 2015, entre os banheiros funcionais (aqueles que as pessoas podem usar de verdade), um deles era um "banheiro de bar". Meia luz, lambe-lambe nas paredes, nenhum luxo. Projeto de Guto Requena. Embora seu conceito fosse estupendo - no todo do projeto - eu me divertia com os comentários contrariados do público. Existia uma dissonância entre os vestidos elegantes e aquele local. E creio que boa parte daqueles que se sentiam incomodados pelo espaço poderiam ter passado diretamente por ele, sem levá-lo na memória de seus desconfortos. Mas...era um banheiro funcional. Quem precisava usar o banheiro não tinha muita liberdade de escolha naquele trecho do circuito de visitação.
Nasceu ali o Projeto Vida Privada.
Nasceu de uma necessidade de prorrogar a sensação de estranhamento e incômodo.
Fiz uma foto com meu vestido - elegante - no banheiro de bar. E postei porque eu queria forçar o olhar para um contexto cheio de dissonâncias.
“O Surrealismo é destrutivo, mas ele destrói somente o que considera algemas limitadoras da nossa visão.”
Salvador Dalí
Só comentários negativos...
A vantagem de desenvolver um projeto em plataformas de rede social é justamente conhecer, de forma imediata, a reação de quem te observa. E as reações foram, no geral, muito negativas. O que, evidentemente, fez meu interesse crescer bastante no tema. Recebi inúmeras fotos de pessoas sentadas no vaso sanitário, como deboche. Recebi nudes. Recebi cantadas. Recebi conselhos tais como "Olha...isso pode ser prejudicial para a sua imagem".
Agora que você já viu algumas das minhas fotos, tente transferir as minhas posturas e os desenhos feitos com o meu corpo para um outro ambiente. Um quarto, uma sala ou uma cozinha. Você acha que isso seria igualmente "prejudicial para a minha imagem ou carreira?". Esse é o questionamento que mais me estimulou a continuar.
Prossegui com muita pesquisa. E elas tinham dois percursos: 1) eu buscava referências de imagens com expressões corporais que pudessem causar estranhamento. Pratico yoga desde 1991 - isso me ajudou bastante. A minha assistente de produção, Júlia Martinez, na época, colaborou muito com seu olhar de fotógrafa sintonizado nesse propósito. 2) eu buscava também bibliografia que me fizesse compreender semiótica e interpretação dos signos. Precisava ainda de referências que me levassem a desvendar o privado como necessidade individual (já que aquele era o meu corpo exposto em uma rede). E - parcialmente por pura sacanagem - amigos passaram a me mandar artigos sobre história do banheiro, da higiene pessoal e das necessidades básicas. Mal sabem o quanto isso foi importante.
"E se a arte tiver uma finalidade que pode ser definida e abordada em termos simples? Ela pode ser um instrumento. E precisamos observar melhor que espécie de instrumento é este - e o que pode trazer de bom para nós."
Alain de Botton
FASE 1: mistérios da criatividade
A FASE 1 do @projetovidaprivada, no Instagram, tem cerca de 300 fotos. Em todas, eu realizo algum tipo de perfomance em banheiros. Quase todas essas fotos foram feitas nos meus intervalos de gravação, durante as coberturas de TV CASACOR. Não tinha mais do que meia hora para me dedicar a cada uma delas. A limitação de tempo e de recursos foi meu principal gatilho de criatividade. Eu tinha um tema (banheiro) e uma obrigação: encontrar o ângulo em que fosse possível ver a privada. Inúmeras vezes, me deparei com ambientes lindos do ponto de vista da arquitetura, mas sem recuo suficiente para uma foto em que o vaso aparecesse. Também não tinha possibilidade de levar produção. Usava, portanto, os elementos do próprio espaço.
Conforme o projeto se desenvolveu, as críticas diminuíram. E eu comecei a receber mensagens de arquitetos perguntando se eu tinha interesse em me fazer fotografar num banheiro de sua autoria. Em algumas das viagens, fui surpreendida por produções levadas pelos próprios profissionais: um vestido de noiva, uma roupa de bailarina e uma roupa para dança do ventre. Os arquitetos foram os primeiros a compreender o projeto - isso, se deve, sem dúvida, a uma maior exposição da categoria ao universo das artes, em geral, e das formas, em particular. Também percebi que as minhas imagens começaram a chegar a artistas plásticos fora do Brasil.
Os contatos via Direct Message do Instagram ficaram mais frequentes. De maneira quase unânime, artistas plásticos e arquitetos não questionam minhas fotos. Mas a pequena parte (pequena mesmo) dos meus seguidores que não está ligada a essas áreas ainda pergunta bastante por que uso o banheiro como cenário. Explicar, exemplificar e dialogar sobre isso passou a fazer parte do meu cotidiano. E me ajudou a construir a FASE 2 dessa história.
Conversar sobre os banheiros ou sobre processos criativos se tornou uma rotina deliciosa. E eu entendi que a percepção das imagens passa muito pelo histórico do receptor. Isso fez brotar um desejo tímido de inverter os papéis. Eu queria ser o receptor da foto do outro. Eu queria que o outro se colocasse dentro dos meus riscos e se fizesse fotografar. Foi preciso uma Pandemia para que esse desejo tomasse forma.
A FASE 2 do @projetovidaprivada é muito mais ambiciosa e difícil que a FASE 1. Eu recebo fotos de pessoas em suas casas, em seus banheiros. Cada participante interpreta um personagem que vive, no período de isolamento social, seus medos, suas angústias, suas descobertas, seus impulsos e, alguns casos, sua centelha de felicidade e reconexão com o lar. A base continua sendo a ironia - uma ironia com relação ao seu corpo, com relação aos seus nojos, com relação aos seus desejos. A principal dificuldade é a forma de expressão. Compreender o que difere uma imagem banal e uma imagem com camadas múltiplas de mensagens tem sido a minha busca. Mais uma vez, os artistas plásticos e arquitetos me auxiliam no percurso, mas é o público não necessariamente ligado às artes que aponta um caminho interessante e desfruta, com a graça da descoberta, do banheiro como palco cênico.
As fotos da FASE 2 são publicadas nos Stories do perfil @projetovidaprivada. Elas ficam nos destaques para que você possa encontrá-las depois.
O céu é o limite para os desdobramentos desse projeto. PARTICIPE.
"Mas então aconteceu a coisa dos banheiros.
Meus pacientes, isolados em casa, tiveram que encontrar um lugar onde ninguém pudesse ouvi-los para fazer nossas sessões de terapia. Algumas vezes eles encontravam privacidade no quarto, num closet ou no carro, mas quase sempre é num banheiro, com meu paciente sentando no vaso enquanto conversamos."
Lori Gottlieb, psicoterapeuta, colunista do jornal The New York Times