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  • Foto do escritorMárcia Carini

A fantástica história do matador de aluguel e o recado do meu pai, depois de morto


Eu cresci ouvindo a história de X, o matador de aluguel do nosso bairro. Ao longo dos anos, emprestei para ele um feitio imaginário: uma boca com vincos profundos, um cinto de fivela grande, talvez um bigode. E um olhar bom. Não sei por que ele tinha um olhar bom na minha imaginação. Acho que é porque ele cobrava pouco. Meu pai sempre dizia que ele cobrava bem baratinho. A cotação de 2018 estava em 400 reais. O X me parecia mais caridoso do que cruel.

Com essa história fabulosa, meu pai nos ajudava a acabar com qualquer acesso de raiva. Para tudo de ruim que acontecia, tinha sempre a possibilidade de chamar o X e…reestabelecer a ordem.

Brigou com o namorado? Chama o X.

Alguém fez bullying com você? Chama o X.

O cara da padaria te deu troco errado? Chama o X.

E conforme fui ficando adulta, os motivos variavam:

O chefe te sacaneou? Chama o X.

Bateram no seu carro? Chama o X.

Clonaram seu celular? Chama o X.

A menção ao personagem mítico nos ensinava que, afinal, o impulso de eliminar alguém era totalmente injustificável. Muitos dos meu momentos de fúria acabaram em risada depois da frase “Chama o X”.

Atenção: eu preservo aqui o nome real (real?) do assassino de aluguel. Mas saiba que ele atende por um monossílabo muito sonoro e, se você conviveu comigo, com certeza vai lembrar qual é.

Nos últimos anos, eu queria saber mais sobre o X. Eu queria encontrar o X. Eu sou jornalista. Eu queria entender o que o X pensava, se já tinha sido preso, se rezava toda noite... Ou, no fundo, eu só queria saber se o X existia de verdade. E meu pai, entre enigmático e divertido, dizia: “Existe, filha! O X existe. Eu encontrei com ele semana passada”. E eu pedia: “Da próxima vez, faz pelo menos uma foto…”. Mas meu pai não tinha celular. E eu nunca encontrei o X. E meu pai morreu antes de nos apresentar…

Hoje, faz exatamente um ano que meu pai morreu. Acho que passou rápido. Mas muita coisa aconteceu nesse intervalo. Coisas normais e coisas inexplicáveis como a que conto agora. Espero que o leitor mande uma explicação. Não tem problema se for inventada e nada razoável. As coisas razoáveis estão me interessando bem pouco.

Meu pai morreu sem me apresentar o X. Sempre que alguém morre, a gente pensa nas suas tarefas inconclusas. Fato é que ninguém vai conseguir zerar o jogo e finalizar tudo. É a vida. Seguiram-se meses de reflexão para mim sobre a partida do meu pai. Tive muitos sonhos em que ele me abraçava e me descrevia coisas que fazia "lá". Mas, no próprio sonho, eu dizia para ele: “Eu acho que eu estou criando todos esses sonhos com você, pai, de tanta falta que você me faz…Isso tudo não existe”. E ele respondia: “Existe, filha”. E emendava algo que eu não poderia criar.

O tempo passou e, sem meu pai, nem me lembrei mais do X. Até o dia em que clonaram o celular da Camila - uma arquiteta carioca de quem eu gosto tanto. Quando tudo já estava resolvido, conversamos via WhatsApp e eu escrevi: “Vou chamar o X para dar um corretivo em quem te clonou”. Ela não sabia quem era o X e eu contei toda a história. Rimos. Nos despedimos. Coloquei o celular sobre a escrivaninha, olhei para o lado e desabafei, em voz alta: “Poxa, pai, você foi embora e eu nunca vi nem uma fotinho do X”. E foi então que aconteceu a primeira coisa estranha: eu OUVI meu pai responder. “Eu vou te mostrar uma fotinho do X, filha”. Arrepiei. Mantive a calma e pensei: “Fiquei maluca…Cedo ou tarde, ia acontecer”. Fui beber água para checar se tudo estava no mesmo lugar e se eu ainda era a mesma pessoa.

Isso foi numa quinta-feira de novembro. O mais doido ainda estava por acontecer.

No sábado, eu estava sozinha em casa quando chegou uma mensagem do meu irmão Maurício no grupo da família: "Um prêmio para quem adivinhar quem é”. Na sequência, uma self dele com um cara. Um homem franzino, sem vincos no canto da boca, nem cinto de fivela larga. Em choque, escrevi “Se for o X, vou ter um troço”. Meu irmão ficou meio decepcionado. Não esperava que eu adivinhasse tão rápido: “É ele mesmo”. Desabei num choro convulsivo. Mas era um choro convulsivo alegre. Não sei explicar o que eu senti.

Meu pai tinha dado um jeito de me mostrar uma fotinho do X?

Meu pai tinha dado um jeito de me mostrar uma fotinho do X.

Como isso aconteceu? De um jeito ainda mais incrível.

Aquele sábado era aniversário de um primo - que tem um bar lá no bairro da minha infância. Meu pai era muito ligado às datas de aniversário. Em geral, era o primeiro do dia a ligar para o aniversariante. Então, meu irmão pensou: “Ah…vou lá no bar dar os parabéns para o primo”. Acontece que esse meu irmão não é muito chegado a bar. Quase nunca entra em bares, na verdade. E, durante os meses de pandemia, a chance de ele sair de casa (!), acompanhado da minha mãe (!!), para ir a um bar da periferia (!!!) era muito próxima de zero. Naquele sábado, a probabilidade falhou.

Meu irmão estacionou o carro e nem pegou o celular porque era para ser um “oi” muito rápido. Deu os parabéns com toque de cotovelo e já estava para ir embora quando o meu primo, de dentro do balcão, gritou para um cara que passava de bicicleta do outro lado da rua: “E aí, X?”. Meu irmão arregalou os olhos e falou: “Esse é ‘o' X?”. Com a resposta positiva correu até o carro para pegar o celular. Que desculpa você usaria para fazer uma self com um um assassino de aluguel? Meu irmão falou o que era a verdade naquele momento: “Preciso fazer uma foto para minha irmã”. E fez. E me mandou.


Foi assim que aconteceu. E eu contei para vários amigos na tentativa de testar minha própria sanidade.

Depois disso, comecei a ler Jung - sugestão de dois amigos queridos. Li outras coisas que explicariam como o meu próprio cérebro pode ter criado cada uma das etapas - da voz do meu pai me dizendo que ia me mostrar uma fotinho de X aos passos do meu irmão e depois do meu primo, que, afinal, de repente, do nada, resolveu gritar o nome do cara da bicicleta do outro lado da rua. "E aí, X?"...

Mas hoje faz um ano que meu pai morreu. E eu quero pensar apenas que meu pai - ou a energia que ele foi - se mantém unida num núcleo de consciência, que não se esquece de mim, dos meus irmãos, da minha mãe, dos meus filhos, dos meus sobrinhos e de tantos amigos que ele fez. Quando ele pode, ele ultrapassa as barreiras quânticas e vem nos ver aqui (tudo com a permissão do "gerente" ou "chefe" da Terra, como ele me disse uma vez, num sonho).

E o X…bom…na verdade, eu acho que o X não é assassino de aluguel. É só alguém que leva a vida de bico em bico e que motivou a criação de uma narrativa fantástica. Meu pai deu um jeito genial de me fazer entender isso. Permanecem o encantamento e a filosofia da história.


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Acho que vou sonhar com você essa noite, pai.

Acho sim.

Te amo.



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